Aristides Sousa Mendes, o diplomata português que, em Junho de 1940, decidiu dar vistos, em Bordéus, a cerca de 30 mil refugiados da guerra, na sua maioria judeus, é o principal responsável por este auditório cheio. Literalmente. Se não fosse ele, alguma desta gente não estaria viva, e muita nem sequer tinha nascido. Isso percebe-se melhor num momento particularmente tocante da sessão, quando alguém da mesa pede a todos aqueles com familiares salvos por Aristides Sousa Mendes que se levantem. Quase metade da sala! São avós, pais e netos que sabem de certeza certa que foi Sousa Mendes que lhes permitiu a sobrevivência e a existência.
A gratidão e a admiração destas centenas de pessoas pelo diplomata português é ilimitada, ele é um herói que desafiou o ditador Salazar para fazer “the right thing”, aquilo que era justo. No auditório do Centro da História Judaica não há dúvidas sobre isso e todos sabem como Aristides Sousa Mendes pagou cara essa ousadia perante o regime. Todos sabem como ele acabou expulso da função pública, impedido de exercer a sua profissão de diplomata e remetido à miséria.
Mas nem isso abalou a sua determinação e dignidade, valores que transmitiu à família. Sheila Abranches-Pierce, neta de Aristides, americana da Califórnia, testemunha que nunca ouviu qualquer lamento dos seus pais ou dos seus tios sobre a atitude do avô que conduziu a família à miséria. À Renascença, recorda como o pai sempre se sentiu um “americano com sotaque” e a nostalgia que o invadia quando ia a Portugal. “Mas nunca o ouvi dizer uma única vez que se o meu avô não tivesse feito o que fez, ele poderia ter vivido em Portugal. Pelo contrário, sempre se orgulhou do meu avô e sempre disse que era importante divulgar o seu exemplo”. O pai de Sheila era o filho mais novo de Aristides, aquele que viveu o drama de Bordéus com menor consciência dos perigos corridos, tinha apenas cinco anos.
Um ano mais novo era Jean-Claude van Ittalie, que vivia em Bruxelas quando os alemães invadiram a cidade. Acordou com o ruído dos bombardeamentos para ver a mãe a meter à pressa alguns haveres numa mala e fugirem da cidade. Chegaram a Bordéus de automóvel e Jean-Claude ainda se lembra que havia uma fila de milhares de pessoas frente ao consulado português a tentar obter vistos. Mas o acaso fez com que não esperassem muito tempo. “Havia um jovem judeu alemão, de 14 anos, também em fuga, que organizava a entrada e saída das pessoas. Percebeu que tínhamos carro e disse ao meu pai que o metia lá dentro se ele o levasse connosco no carro”, contou à Renascença.
O pai de Jean-Claude, como muitos outros, nem fazia ideia de que Sousa Mendes passava os vistos à revelia do Governo português, mas hoje este sobrevivente diz que Aristides “recusou a noção convencional de obediência enquanto cônsul-geral de Portugal em Bordéus”, e que foi graças a isso que ele e a família sobreviveram. “O Aristides Sousa Mendes foi um herói”, diz, num tom sereno e muito convicto, como quem afasta a suspeita de que o afirma por ser parcial na questão.
Um herói celebrado na quinta-feira à noite pela comunidade judaica de Nova Iorque, quando passam 60 anos sobre a sua consagração como “Homem Justo entre as Nações”, distinção conferida pelo Yad Vashem, a autoridade (e museu) israelita dedicada à recordação do Holocausto. Entidades como o já mencionado Centro da Histórica Judaica, a Fundação Sousa Mendes, a Federação Sefardita Americana, a Sociedade Histórica Judaico-Americana, a Fundação Raoul Wallenberg uniram esforços com algumas portuguesas como o Consulado-Geral de Portugal em Nova Iorque, o Museu Virtual Aristides Sousa Mendes e a Câmara Municipal de Almeida para a sessão de evocação, mas também para inaugurar uma exposição dedicada a Aristides e à época em que Portugal recebeu alguns milhares de refugiados da Segunda Guerra Mundial. Exposição em que figura material vindo de Portugal.
O próprio presidente da Câmara de Almeida, António Batista Ribeiro, compareceu na cerimónia porque é neste município que se situa Vilar Formoso, a fronteira onde chegaram os refugiados que traziam os vistos passados em Bordéus pelo cônsul português. E ali vai ser criado um museu alusivo à época, cujo projecto foi explicado pelas suas responsáveis científicas – a arquitecta Luísa Pacheco Marques e a historiadora Margarida Ramalho, igualmente coordenadoras do Museu Virtual Aristides Sousa Mendes. Trata-se essencialmente da recuperação de dois armazéns contíguos à estação do caminho-de-ferro e da própria gare do comboio, por onde na década de 1940 os refugiados entravam no país. Daí que o nome do futuro núcleo museológico seja “Vilar Formoso: a Fronteira da Paz”. Uma designação que parece bastante apropriada já que só quando chegavam a Portugal, após atravessarem a Espanha franquista, aliada de Hitler, é que os refugiados se sentiam em terreno seguro.
Entusiasta do projecto, o autarca de Almeida contou à Renascença que foi ele próprio a avançar com a ideia quando percebeu a importância histórica de Vilar Formoso naquela época. “Uma das vezes que fui a Lisboa fui ter com as responsáveis do museu virtual, apresentei-me e disse-lhes ao que vinha”. A partir daí as coisas não mais pararam. Da Fundação Grant, norueguesa, vieram cerca de 350 mil euros e a autarquia está disponível para cobrir o resto do investimento caso não surjam mais apoios financeiros. Segundo Batista Ribeiro, a totalidade do projecto deverá custar entre 700 e 800 mil euros, uma verba que não parece exagerada a quem faz questão de preservar uma memória de que o país tem razões para se orgulhar.
De honra e responsabilidade em celebrar Aristides Sousa Mendes falou também a cônsul-geral portuguesa em Nova Iorque, Manuela Bairos, que aludiu à crise actual dos refugiados que se vive na Europa, para confessar um dilema de consciência: “É difícil recusar um visto nos dias de hoje quando pensamos em Aristides Sousa Mendes”. Depois lembrou que o diplomata português era formado em Direito e que uma forma interessante de o homenagear seria criar uma cátedra e uma bolsa de estudo com o seu nome numa das faculdades de Direito mais prestigiadas de Nova Iorque, ligada à comunidade judaica: a Cardoso Law School.
fonte: http://rr.sapo.pt/noticia/51377/?utm_source=rss
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