terça-feira, fevereiro 03, 2009
Aristides de Sousa Mendes - Reclamação apresentada à Assembleia Nacional em 1945.
Sr. Presidente da Assembleia Nacional:
Aristides de Sousa Mendes, ex-cônsul de Portugal em Bordéus, lugar de que foi destituído pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, por motivo de ter, com desobediência às instruções vigentes, dado vistos em passaportes a milhares de estrangeiros que procuravam no nosso país abrigo contra a ameaça dos exércitos alemães, então em vias de ocupação do Sudoeste da França vem, no exercício do seu direito de reclamação, garantido no n.º 18 do art.º 8º da Constituição, apelar para a Assembleia Nacional, como encarregada pela mesma Constituição de « vigiar o cumprimento das suas disposições e das leis da Nação » ( Art.º 91, n.º 2) com os seguintes fundamentos:
Tendo-lhe sido enviadas instruções pelo ministro dos Negócios Estrangeiros sobre vistos em passaportes, essas instruções continham na 1ª alínea a proibição absoluta de os dar aos israelitas, sem discriminação de nacionalidade.
Tratando-se de milhares de pessoas de religião judaica, de todos os países invadidos, já perseguidas na Alemanha e noutros países seus forçados aderentes, entendeu o reclamante que não devia obedecer àquela proibição por a considerar inconstitucional em virtude do art.º 8.º n.º 3 da Constituição, que garante liberdade e inviolabilidade de crenças, não permitindo que ninguém seja perseguido por causa delas, nem obrigado a responder acerca da religião que professa, medida que aliás se lhe tornava necessária para saber a religião dos impetrantes, e assim negar ou conceder o visto.
Nestes termos, se o reclamante não obedeceu à ordem recebida do Ministério, não fez mais que resistir, nos termos do n.º 18 do art. 8º da Constituição, a uma ordem que infrigia manifestamente as garantias individuais, não legalmente suspensas nessa ocasião (art.º 8.º, n.º 19).
E não se pretenda que a inviolabilidade de crenças não é, segundo a Constituição, um direito para os estrangeiros visados, por não se acharem residindo em Portugal, único caso em que poderiam ter os mesmos direitos que os nacionais (do art.º 7.º) pois não se trata no caso presente de um direito dos estrangeiros mas de um dever dos funcionários portugueses, que nem em Portugal nem nos seus Consulados, também território português, poderão sem quebra da Constituição interrogar seja quem for sobre a religião professada, para negar qualquer acto da sua competência, o que a admitir-se significaria odiosa perseguição religiosa, mormente quando se impunha o direito de asilo que todo o país civilizado sempre tem reconhecido e praticado em ocasiões de guerra ou calamidade pública.
Espera o reclamante que a Assembleia, na alta função de vigiar pelo cumprimento da lei, haja por bem declarar nula a pena que lhe foi imposta, por motivo da desobediência às instruções citadas, exigindo a respectiva responsabilidade àquele ou àqueles funcionários que, dando-lhe a referida ordem, «atentaram contra a Constituição e o regime estabelecido» (art.º 115.º, n.º 2) reconhecendo-lhe o direito e reparações materiais e morais pelo prejuízo que lhe foi causado pelo processo disciplinar que lhe foi instaurado no Ministério (art.8.º, n.º18).
Não alegou na resposta que deu no mesmo processo disciplinar estas circunstâncias, pelo motivo de, lavrando a guerra na Europa, não querer dar publicidade e relevo a uma atitude, por parte de funcionários do Estado, que sobre ser inconstitucional poderia ser interpretada como colaboração na obra de perseguição do governo hitleriano contra os judeus, o que representaria uma quebra da neutralidade adoptada pelo governo.
Não pode porém suportar a evidente injustiça com que foi tratado e conduziu ao absurdo, a que pede seja posto rápido termo, de o reclamante ter sido severamente punido por factos pelos quais a Administração tem sido elogiada, em Portugal e no estrangeiro, manifestamente por engano, pois os encómios cabem ao país e à sua população cujos sentimentos altruístas e humanitários tiveram larga aplicação e retumbância universal, justamente devido à desobediência do reclamante.
Em resumo, a atitude do Governo Português foi inconstitucional, antineutral e contrária aos sentimentos de humanidade e, portanto, insofismavelmente «contra a Nação».
Pede deferimento (a) – Aristides de Sousa Mendes.
Publicação: Thursday, October 26, 2006 10:51 AM por akfak
Fonte: sol.sapo.pt/blogs/asfak/
Sr. Presidente da Assembleia Nacional:
Aristides de Sousa Mendes, ex-cônsul de Portugal em Bordéus, lugar de que foi destituído pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, por motivo de ter, com desobediência às instruções vigentes, dado vistos em passaportes a milhares de estrangeiros que procuravam no nosso país abrigo contra a ameaça dos exércitos alemães, então em vias de ocupação do Sudoeste da França vem, no exercício do seu direito de reclamação, garantido no n.º 18 do art.º 8º da Constituição, apelar para a Assembleia Nacional, como encarregada pela mesma Constituição de « vigiar o cumprimento das suas disposições e das leis da Nação » ( Art.º 91, n.º 2) com os seguintes fundamentos:
Tendo-lhe sido enviadas instruções pelo ministro dos Negócios Estrangeiros sobre vistos em passaportes, essas instruções continham na 1ª alínea a proibição absoluta de os dar aos israelitas, sem discriminação de nacionalidade.
Tratando-se de milhares de pessoas de religião judaica, de todos os países invadidos, já perseguidas na Alemanha e noutros países seus forçados aderentes, entendeu o reclamante que não devia obedecer àquela proibição por a considerar inconstitucional em virtude do art.º 8.º n.º 3 da Constituição, que garante liberdade e inviolabilidade de crenças, não permitindo que ninguém seja perseguido por causa delas, nem obrigado a responder acerca da religião que professa, medida que aliás se lhe tornava necessária para saber a religião dos impetrantes, e assim negar ou conceder o visto.
Nestes termos, se o reclamante não obedeceu à ordem recebida do Ministério, não fez mais que resistir, nos termos do n.º 18 do art. 8º da Constituição, a uma ordem que infrigia manifestamente as garantias individuais, não legalmente suspensas nessa ocasião (art.º 8.º, n.º 19).
E não se pretenda que a inviolabilidade de crenças não é, segundo a Constituição, um direito para os estrangeiros visados, por não se acharem residindo em Portugal, único caso em que poderiam ter os mesmos direitos que os nacionais (do art.º 7.º) pois não se trata no caso presente de um direito dos estrangeiros mas de um dever dos funcionários portugueses, que nem em Portugal nem nos seus Consulados, também território português, poderão sem quebra da Constituição interrogar seja quem for sobre a religião professada, para negar qualquer acto da sua competência, o que a admitir-se significaria odiosa perseguição religiosa, mormente quando se impunha o direito de asilo que todo o país civilizado sempre tem reconhecido e praticado em ocasiões de guerra ou calamidade pública.
Espera o reclamante que a Assembleia, na alta função de vigiar pelo cumprimento da lei, haja por bem declarar nula a pena que lhe foi imposta, por motivo da desobediência às instruções citadas, exigindo a respectiva responsabilidade àquele ou àqueles funcionários que, dando-lhe a referida ordem, «atentaram contra a Constituição e o regime estabelecido» (art.º 115.º, n.º 2) reconhecendo-lhe o direito e reparações materiais e morais pelo prejuízo que lhe foi causado pelo processo disciplinar que lhe foi instaurado no Ministério (art.8.º, n.º18).
Não alegou na resposta que deu no mesmo processo disciplinar estas circunstâncias, pelo motivo de, lavrando a guerra na Europa, não querer dar publicidade e relevo a uma atitude, por parte de funcionários do Estado, que sobre ser inconstitucional poderia ser interpretada como colaboração na obra de perseguição do governo hitleriano contra os judeus, o que representaria uma quebra da neutralidade adoptada pelo governo.
Não pode porém suportar a evidente injustiça com que foi tratado e conduziu ao absurdo, a que pede seja posto rápido termo, de o reclamante ter sido severamente punido por factos pelos quais a Administração tem sido elogiada, em Portugal e no estrangeiro, manifestamente por engano, pois os encómios cabem ao país e à sua população cujos sentimentos altruístas e humanitários tiveram larga aplicação e retumbância universal, justamente devido à desobediência do reclamante.
Em resumo, a atitude do Governo Português foi inconstitucional, antineutral e contrária aos sentimentos de humanidade e, portanto, insofismavelmente «contra a Nação».
Pede deferimento (a) – Aristides de Sousa Mendes.
Publicação: Thursday, October 26, 2006 10:51 AM por akfak
Fonte: sol.sapo.pt/blogs/asfak/
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